Nos anos 1990, o axé music apresentou um repertório de força, riqueza e relevância transformadoras para a música pop brasileira. Era a fase de ouro do gênero. As gravações, hoje clássicas, colocavam à frente de tudo uma potente parede percussiva e um naipe de metais matador dando sustentação à voz – que, na melhor parte das vezes, era uma voz de mulher. As canções falavam de amor e festa, mas também promoviam autoestima racial e regional, tratavam de temas sociais, traziam reflexões espirituais e outras complexidades e belezas. Essa combinação perfeita de ritmo, melodia, letra e arranjo deu em algo tão potente que canções lançadas há três décadas seguem alimentando pipocas e pistas de clubes até hoje. O corte se deu a partir dos anos 2000, quando interesses da indústria cultural e movimentações naturais do mercado de música impuseram novas regras, levando artistas do axé music a caminhar com seu som em outras direções e referências. Os tambores, antes protagonistas, foram para o fundo da cena, virando apenas uma sombra no som das gravações. E mesmo o mote poético das canções pegou outro rumo.
Fazendo um salto temporal de 30 anos, é justamente na era dourada do gênero que está baseada toda a concepção de AXÉ, quinto álbum da cantora e compositora Marcia Castro. Em dez faixas inéditas, estão de volta o espírito, a poética e a musicalidade essenciais do axé music – tanto nas composições quanto nos arranjos. Participações especiais de Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Margareth Menezes reafirmam a fundamental importância feminina para que o axé atingisse repercussão de escala nacional e internacional, furando bloqueios regionais e estilísticos. Hiran divide vocais com Marcia na faixa “Coladinha em Mim”. AXÉ tem produção musical de Letieres Leite e Lucas Santtana – dois grandes produtores baianos de gerações e escolas diferentes. A direção artística é de Marcus Preto, que assina também este texto de apresentação.
Quando Marcia Castro me telefonou dizendo que queria fazer um disco comigo, lembrei imediatamente da noite em que voltava para casa a pé, meses antes, com uma garrafa de vinho na cabeça e “O Canto da Cidade” no fone de ouvido. Ouvindo aquilo outra vez, tive vontade imediata de criar um repertório novo e inédito no ambiente original do axé music – que pudesse soar contemporâneo, mas não perdesse nada da potência musical e poética que o gênero alcançou nos anos 1990. “Marcinha, o que você acha de fazermos um disco de axé?”, foi a pergunta que eu fiz. “Pretito, não acredito! Esse é um caminho para onde eu já estava indo naturalmente, vai fazer todo o sentido!” Naquele mesmo telefonema, fiz o time dos sonhos: Letieres, Lucas, Daniela, Ivete, Margareth, Carlinhos Brown. E, como era sonho, eu jamais poderia imaginar que se tornaria real. Mas a credibilidade que Marcia Castro tem entre os colegas fez com que ela fosse ticando, nome por nome, toda a lista.
AXÉ foi pensado como um LP – e será lançado nesse formato em fevereiro de 2022, às vésperas do Carnaval.
O lado A abre com “Que Povo É Esse”, de Tenison del Rey, Marcela Bellas e Paulo Vascon, frevo acelerado e galopante que remete ao primordial grupo Chiclete com Banana. Escrita por Seco e pelo líder do BaianaSystem, Russo Passapusso, “Bolero Lero” desacelera e sensualiza a audição, bebendo nas influências latinas e caribenhas com que o axé sempre flertou, vide Carlinhos Brown durante e depois da Timbalada. Ivete Sangalo chega junto na faixa seguinte, “Holograma”, samba-reggae de Tiago Simões que ganhou um belo arranjo de sopros de Letieres Leite. “Ajuremar-se” tem letra e música de Emicida e foi encomendada ao rapper paulista com o pedido que ele fizesse uma canção espiritual, ritualística, uma espécie de “Andar com Fé”, de Gilberto Gil. Escrita por Teago Oliveira, da banda Maglore, “Ver a Maravilha” fecha o lado do LP com uma mensagem de esperança, algo que evoca os momentos mais leves dos Novos Baianos.
Daniela Mercury chega para o dueto que abre o lado B. Composição de Carlinhos Brown e André Lima, “As Paulinas dos Jardins” segue o diálogo entre São Paulo e Salvador que tanto Daniela quanto Marcia Castro fizeram e seguem fazendo – e do qual o axé music também se beneficiou. Mais um certeiro arranjo de cordas de Letieres Leite amarra isso tudo. Nessa e na seguinte, “Namorar no Mar”, samba-reggae romântico e sexy escrito por Pedro Pondé e Rafa Dias com colaborações da própria Marcia Castro. Nando Reis compôs “Macapá” especialmente para ser a balada do álbum, cumprindo a missão que, nos discos clássicos de axé, era sempre dada a nomes ligados ao pop-rock, sobretudo Herbert Vianna. “Coladinha em Mim” é outra canção de Marcia Castro, desta vez em parceria com Fabio Alcantara. O arranjo ressalta a mistura de reggaeton com samba-reggae, abrindo espaço para as rimas do rapper baiano Hiran. A deusa Margareth Menezes dá a palavra final de AXÉ, dividindo com Marcia os vocais de “Arco-Íris do Amor”. Parceria de Magary, Fabio Alcantara e Lucas Santtana, a faixa foi a primeira amostra do álbum, lançada como single no ano passado, antes de sabermos que aquele seria nosso último Carnaval. Ouça o álbum aqui
AXÉ foi concebido antes que pudéssemos saber que viveríamos uma pandemia. E estava pronto para ser lançado quando todos tivemos que nos recolher em casa, longe da festa e sem motivos para fazê-la. Por razões óbvias, seguramos seu lançamento, sabendo que era preciso esperar o momento em que suas canções animadas e cheias de calor voltassem a fazer sentido. Aguardar que o álbum retomasse sua função primeira: a de divertir as pessoas, muitas pessoas, todas juntas. Agora, isso começa a parecer possível. E é tanta saudade da vida lá fora que AXÉ acabou se tornando até mais útil do que era quando começamos a criá-lo. Os melhores carnavais ainda estão por vir.
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